quinta-feira, 29 de abril de 2010

A Poesia na Aula de Ciências


Existem relações profundas entre Ciência, Cultura e Arte. No entanto, a discussão integrada dessas dimensões raramente se realiza nas salas de aula. Numa tentativa de motivar esse diálogo, propomos a exploração, em sala, de poemas referentes à Ciência, de forma interligada e em interação com outras disciplinas.
Como um primeiro exemplo de tópico a ser trabalhado, podemos citar a ‘Máquina do Mundo’. Muitos temas relacionados à Astronomia e à visão geocêntrica do século XVI são encontrados na poesia de Camões. Outros poetas da língua portuguesa, como Carlos Drummond de Andrade e Haroldo de Campos, também abordaram esses temas. Reproduzimos abaixo um texto de Rómulo de Carvalho, físico, poeta e divulgador da Ciência que escrevia sob o pseudônimo de Antonio Gedeão.
A Máquina do Mundo
Antonio Gedeão
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
A evolução no tempo também permeia o pensamento de artistas e cientistas. Em quase todos os ramos da Ciência, esse conceito é fundamental no entendimento de fenômenos naturais. E na literatura poética universal, o tempo é um dos temas mais recorrentes, pela vinculação óbvia com a vida e a morte. Aqui, um exemplo tirado da obra de Murilo Mendes.
Estudo para um Caos
Murilo Mendes
O último anjo derramou seu cálice no ar.
Os sonhos caem na cabeça do homem,
As crianças são expelidas do ventre materno,
As estrelas se despregam do firmamento,
Uma tocha enorme pega fogo no fogo,
A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.
Os vulcões vomitam cometas em furor
E as mil pernas da Grande dançarina
Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.
Rachou-se o teto do céu em quatro partes:
Instintivamente eu me agarro ao abismo.
Procurei meu rosto, não o achei.
Depois a treva foi ajuntada à própria treva.
Alguns temas presentes nas obras de escritores contemporâneos são inspirados na Física Moderna. As idéias surgidas no início do Século XX, como as da Física Quântica, levaram a uma profunda revolução na Física. A letra de Gilberto Gil reproduzida abaixo é um exemplo do reflexo dessa revolução na cultura popular.
Quanta
Gilberto Gil
Quanta do latim
Plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar
Fragmento infinitésimo
Quase que apenas mental
Quantum granulado no mel
Quantum ondulado do sal.
Mel de urânio, sal de rádio
Qualquer coisa quase ideal
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Canto de louvor
De amor ao vento
Vento arte do ar
Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar
De pensamento em chamas
Inspiração
Arte de criar o saber
Arte, descoberta, invenção
Teoria em grego quer dizer
O ser em contemplação
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Sei que a arte é irmão da ciência
Ambas filhas de um Deus fugaz
Que faz num momento e no mesmo momento desfaz.
Na versão integral deste texto, “Poesia na Aula de Ciências?”, Física na Escola, v.3, n.1, Ildeu de Castro Moreira, da UFRJ, cita e comenta diferentes exemplos desses temas e de outros: Os astros; A matéria, A bomba atômica; Caos e fractais; Vida, pensamento e complexidade e Ciência em si .

http://pion.sbfisica.org.br/pdc/index.php/por/artigos/a_poesia_na_aula_de_ciencias

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A ciência por trás da arte e a arte de retratar a ciência


A Desmaterialização do Nariz de Nero. Salvador Dalí, 1947. Óleo sobre tela, 76,4 × 46 cm. Fundação Gala-Salvador Dalí, Figueras.



Há várias correspondências entre os pensamentos científico e artístico. Duas delas, em particular, são freqüentemente observadas nas artes plásticas: a incorporação de avanços da ciência e da tecnologia no conjunto de técnicas utilizadas pelo artista para compor a sua obra e a presença de temas científicos – como expressões do contexto histórico em que se insere cada criação – nas obras de arte em si.
Do primeiro caso, é exemplo o uso de sistemas de lentes e espelhos como auxiliares nos processos de composição pictórica por pintores do século XVII. Nessa época, a produção de pinturas com o auxílio desses recursos se constituía em uma novidade que possibilitava aos artistas entrarem no mundo novo dos fenômenos ópticos, explorando formas possíveis de registro de imagens em suas telas.
A câmara escura é um desses recursos. Predecessora da câmara fotográfica, ela é um instrumento composto de uma caixa com um pequeno orifício, pelo qual entram raios luminosos provenientes do exterior e que são projetados de forma invertida no lado oposto ao orifício. Assim falou sobre ela Constantijn Huygens, pai do célebre cientista Christiaan Huygens: “Toda a pintura é morta em comparação a essa, pois aqui é a própria vida, ou algo mais nobre, se a palavra para exprimi-la não faltasse. Figura, contorno e movimento encontram-se aí naturalmente, de um modo extremamente agradável”.
Não é de se estranhar, portanto, que pintores como o holandês Johannes Vermeer, compatriota e contemporâneo de Huygens, possam ter utilizado a câmara escura como instrumento auxiliar de representação da realidade.
A obra de Vermeer virou tema de filme – A Moça com Brinco de Pérola – e sua relação com a ciência é abordada em artigo escrito por M.C. Barbosa-Lima, G. Queiroz e R. Santiago, publicado na revista Física na Escola, v. 8, n. 2, 2007 – Ciência e Arte: Vermeer, Huygens e Leeuwenhoek.
Mais recentemente na História da Arte, a obra de Salvador Dali constitui um típico caso em que o autor bebe na fonte da Ciência para conseguir a inspiração de seus quadros.
Em várias das mais de 700 telas pintadas por Dali é clara a identificação de temas que tratam da ciência (física, matemática ou biologia). Esta constatação pode ser feita através da simples observação de alguns títulos de seus quadros com palavras que fazem referência direta à ciência, como atômico(a) nuclear, partículas, desmaterialização, desintegração, microfísica, mésons-pi, quartadimensão e raios cósmicos.
Em A Desmaterialização do Nariz de Nero (veja figura acima), por exemplo, a imagem de uma grande romã é mostrada na parte central. A romã encontra-se dividida ao meio e suas sementes aparecem flutuando no ar entre as duas metades. Na visão de Dalí, a romã representa o universo atômico, ou seja, o próprio átomo. As sementes são vistas nessa representação como elétrons em constante movimento dentro do átomo.
Para conhecer melhor essa e outras relações entre a pintura de Dalí e o universo científico, leia o artigo Salvador Dali e a mecânica quântica, de Rodrigo Ronelli D. da Costa, Robson S. dos Nascimento e Marcelo Gomes Germano. O texto completo foi publicado na edição número 2 do volume 8 da revista Física na Escola.

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sexta-feira, 9 de abril de 2010

Biografia de Abrahão de Moraes - Físico brasileiro



Abrahão de Moraes
17 de Novembro de 1917 - 11 de Dezembro de 1970
Itapeceríca da Serra, SP - São Paulo, SP
Astronomia

Abrahão de Moraes, diretor do IAG-USP de 1955 a 1970, atuou incansavelmente pelo desenvolvimento da Astronomia e das Ciências Espaciais no Brasil. Como uma homenagem feita pela comunidade astronômica internacional, uma cratera da Lua é conhecida, hoje, como a cratera De Moraes
Nasceu em Itapeceríca da Serra, SP, em 17 de Novembro de 1917, filho de José Elias e Guilhermina Pires de Moraes. Foi um dos primeiros alunos da recém criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo para onde se transferiu após dois anos na Escola Politécnica e onde graduou-se em Física em 1938. Participou com Mário Schenberg e Walter Schützer do primeiro grupo de pesquisa em Física Teórica criado na USP pelo Professor Gleb Wataghin. Desse tempo são seus primeiros trabalhos publicados pela Academia Brasileira de Ciências.
Em 1945 participou de concurso para a cadeira de Mecânica Racional da Escola Politécnica com uma tese sobre Teoria das Percussões. Classificou-se em segundo lugar, um resultado bastante contestado na época. A classificação lhe valeu os títulos de Doutor em Ciências e de Livre Docente. Dedicou-se intensamente ao ensino tendo sido professor em diversas unidades da USP, onde seus cursos de Mecânica Racional, Mecânica Analítica, Mecânica Celeste e Física Matemática se notabilizaram pela perfeição e clareza de suas exposições. Em 1949 sucedeu Wataghin na chefia do Departamento de Física.
Sempre se interessou pela Astronomia e em 1949, juntamente com o Professor Aristóteles Orsini e outros, fundou a Associação de Amadores de Astronomia de São Paulo da qual foi por varias vezes diretor. Foi então convidado para escrever o capítulo “A Astronomia no Brasil”, do livro “As ciências no Brasil” de Fernando de Azevedo, publicado em 1955. Também em 1955, por indicação do Prof. Aristóteles Orsini, então diretor da Faculdade de Odontologia da USP, foi convidado e assumiu a direção do IAG. Logo de início cumpriu-lhe a tarefa de orientar as atividades do IAG no Ano Geofísico Internacional.
Em 1957, logo após o lançamento do primeiro satélite artificial da Terra (o Sputnik I), suas passagens eram registradas no IAG. No ano seguinte, o registro das passagens pelo meridiano de São Paulo do satélite Explorer I, de vida mais longa, permitiu observar os efeitos do achatamento da Terra na precessão do plano orbital e determinar o seu valor. As observações, bastante precisas, foram feitas usando um rádio-interferômetro que havia sido instalado no IAG por Luiz de Queiroz Orsini e Antonio Helio Guerra Vieira, da Escola Politécnica, para o estudo da ionosfera através das alterações que provocava em ondas de rádio oriundas do espaço sideral.
Estimulado por esses sucessos, Abrahão de Moraes dedicou-se a elaborar uma teoria do movimento dos satélites artificiais da Terra. Sua teoria, publicada pela Academia Brasileira de Ciências e uma das primeiras publicadas, contém o cálculo das principais perturbações orbitais devidas ao achatamento da Terra. Sua visão matemática lhe fez de imediato perceber que no caso particular do movimento de um satélite no plano equatorial da Terra, as equações são integráveis rigorosamente se forem usadas funções elípticas. O artigo inclui a solução desse problema em termos de funções de Jacobi e de Weierstrass.
Mas essa história não termina aqui. Nesse artigo também se mostra que a equação do caso equatorial é idêntica à que se obtém em Relatividade Geral para o movimento de uma partícula em um campo com simetria esférica (ds2 de Schwarzschild). Desde os trabalhos iniciais da Relatividade Geral, as soluções do movimento nesse caso eram obtidas por processos de aproximações sucessivas. O artigo de Abrahão foi o primeiro a incluir uma solução rigorosa para as equações do movimento resultantes do ds2 de Schwarzschild. Aliás, Abrahão em nenhum momento renunciou ao seu passado de físico. Depois do artigo sobre satélites artificias, voltou a trabalhar com Paulus Aulus Pompéia em temas relacionados à análise estatística de séries de eventos sucessivos, em que colaboravam desde os tempos de Gleb Wataghin na USP.
Possuía um conhecimento ímpar das ferramentas matemáticas da Física e um talento inigualável para a solução de problemas. Exemplo disso encontra-se em um artigo de Wilfred Stevens publicado no Monthly Notices da Royal Statistical Society sobre series de diluições geométricas. Wilfred Stevens, egresso de Cambridge e que na sua juventude trabalhou com R.A.Fisher e F.Yates, optou pelo Brasil e aqui ajudou a construir o Departamento de Estatística da USP. Copio partes de um parágrafo desse artigo: “Unfortunately the integrals prove to be intractable. Consider the simplest case … By numerical integration, the writer showed the result to be log 2, and an ingenious proof of this result has been found by Professor Abrahão de Moraes” (Mon. Not. Roy. Stat. Soc. Ser. B, 20, 205-214, 1958).
A escolha de Abrahão de Moraes para dirigir o IAG em 1955 foi fundamental para o futuro daquela instituição e da Astronomia brasileira. Feliz foi a circunstância de que isto tenha ocorrido quase ao mesmo tempo em que Fernando de Azevedo o convidou para escrever o capítulo de Astronomia de seu livro “As Ciências no Brasil”. Aquele trabalho lhe deu uma visão abrangente da Astronomia no Brasil que, após um início razoável nos tempos do Império, havia desaparecido – as últimas pesquisas em astronomia realizadas no Brasil, os trabalhos teóricos sobre o movimento dos asteróides e as observações feitas com a luneta zenital para a determinação da variação da latitude do Rio de Janeiro, ambos de Lélio Gama, datavam da década de 1930. O contraste com o progresso que se verificava em outras disciplinas científicas era gritante. Nas conclusões daquele capítulo, Abrahão escreveu:
“Para que possa nosso país cooperar eficazmente para o progresso da astronomia, mister se faz a ereção de um observatório, ou a transferência de um dos existentes para uma região de clima mais propício, afastada dos grandes centros urbanos. Torna-se ainda necessário atrair para nosso meio alguns astrônomos de grande capacidade e enviar aos grandes estabelecimentos europeus e americanos, nossos jovens que se interessem pelos estudos astronômicos. Procedimento semelhante, empregado em outros domínios científicos, conduziu já a resultados altamente compensadores.”
Certamente, neste final, Abrahão de Moraes tinha em mente o que havia sido feito em diversos departamentos da USP, inclusive no departamento de Física. Por essa razão, uma de suas prioridades foi dar apoio e orientação inicial a pesquisadores jovens, os mesmos que anos mais tarde constituiriam os primeiros grupos de pesquisa em Astronomia Dinâmica, Astrometria e Astrofísica de nosso país. Esses grupos, depois da transformação do IAG em unidade de ensino, formaram o Departamento de Astronomia do IAG.
Outra prioridade que elegeu foi a biblioteca do IAG, na qual investiu tudo o que pode. Atualizou todas as principais coleções de periódicos e as completou adquirindo de livreiros internacionais especializados os volumes que faltavam para completá-la, manteve um programa contínuo de aquisição de livros novos e adquiriu um grande número de obras clássicas. Essa biblioteca foi fundamental para a transformação posterior do IAG em uma importante instituição de pesquisa.
Ao mesmo tempo, com a direta participação de Jean Delhaye, diretor do Observatório de Besançon e mais tarde diretor do Observatório de Paris, elaborou um plano destinado a dotar a nova geração com instrumentos para o trabalho astronômico. O observatório astrométrico do IAG, em Valinhos (que hoje se chama Observatório Abrahão de Moraes), equipado inicialmente com um astrolábio e um círculo meridiano, foi inaugurado em 1972.
Em 1964, com o auxílio de uma comissão de astrônomos franceses liderada por Jean Rösch, iniciou os trabalhos visando à instalação de um observatório astrofísico para uso dos cientistas brasileiros. O Dr. Luiz Muniz Barreto, então diretor do Observatório Nacional, que foi o seu braço direito nessa tarefa e que coordenou os trabalhos iniciais de escolha de sítio, assumiu a liderança do projeto após o prematuro falecimento de Abrahão de Moraes e o levou a termo construindo o que hoje é o Laboratório Nacional de Astrofísica.
Entre 1959 e 1967, Abrahão de Moraes representou o Brasil no comitê técnico da Comissão do Espaço Cósmico da ONU. Em 1967 foi aprovado para a cátedra de Cálculo Diferencial e Integral da Escola Politécnica da USP, transferida, após a reforma universitária de 1969, para o Instituto de Matemática e Estatística. De 1965 a 1970, presidiu o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (hoje INPE) em São José dos Campos, SP.
Faleceu em São Paulo em 11 de Dezembro de 1970.
Em vida recebeu diversas homenagens por sua incansável atuação pelo desenvolvimento da Astronomia e das Ciências Espaciais no Brasil: as “Palmes Académiques” da França, o diploma da National Science Foundation dos Estados Unidos e a Ordem do Mérito Aeronáutico do Brasil. Foi membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Sua memória foi homenageada pela comunidade astronômica internacional que deu o seu nome a uma cratera de impacto na Lua: A cratera De Moraes, [Latitude 49.5° N, Longitude 143.2° E] com 53 km de diâmetro.

Autor:
Sylvio Ferraz Mello

http://www.pion.sbfisica.org.br/pdc/index.php/por/fisicos_do_brasil_memoria/abrahao_de_moraes

sábado, 3 de abril de 2010

Reportagem - Ensino de Física para deficientes visuais

SP Notícias (Ter, 20/03/07 - 22h10)
Trabalho inédito é apresentado sobre ensino de Física para deficientes visuais
Materiais como barbantes e tábuas com pregos estimulam a compreensão de fenômenos por meio do tato
Professores que possuem alunos cegos ou com deficiência visual poderão receber um grande apoio de um trabalho inédito sobre ensino e aprendizagem da Física feito no campus da Unesp de Bauru. A proposta contém orientações sobre a didática em classes mistas – que reúnem estudantes com visão normal e com algum tipo de limitação visual – e usa experimentos que ajudam a compreensão de fenômenos por meio do tato. Fruto do pós-doutorado realizado por Eder Pires de Camargo na Faculdade de Ciências (FC), o estudo foi publicado no final de 2006 na revista eletrônica Educação em Ciências e tem sido apresentado em vários eventos.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), há 24 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental no País, sendo metade delas cegas. O número de portadores de necessidades especiais na rede regular de ensino cresceu 229% de 1998 a 2003. “A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1998 estimulou a inclusão de deficientes, sem preparar os professores para tamanho desafio”, observa Camargo, que leciona na Faculdade de Engenharia (FE), campus de Ilha Solteira, e é o único docente cego em atividade da Unesp.
Em 2005, Camargo acompanhou 22 licenciandos na preparação de um minicurso de 80 horas para uma turma mista do Colégio Técnico Industrial da Unesp de Bauru, formada por 35 alunos com visão normal e dois cegos. Todas as aulas foram filmadas. “Primeiro, planejamos os módulos e a preparação de material de ensino e, depois, fizemos uma reflexão sobre as dificuldades e possíveis soluções na relação do ensino de Física e a deficiência visual”, conta.
Tato e audição
Camargo elaborou materiais que simulam fenômenos nas áreas de óptica, eletromagnetismo, mecânica, termologia e física moderna. O trabalho foi baseado na sua experiência pessoal e no acompanhamento das dificuldades dos licenciandos durante as aulas. “Procuramos elaborar o material explorando os outros sentidos do aluno, como tato e audição”, esclarece.
Um dos maiores desafios da equipe foi ensinar óptica. No ensino tradicional, o professor traça, por exemplo, retas na lousa para representar a trajetória dos raios de luz. Já no modelo de Camargo, a dispersão e refração da luz são simuladas por meio de um barbante que o aluno segura nas mãos. Em eletromagnetismo, para explicar o processo de condução de eletricidade, é usada uma tábua inclinada com pregos e esferas. A inclinação indica a potência elétrica (quanto maior a inclinação, maior a potência), os pregos simulam a estrutura de um material condutor, enquanto as esferas representam os elétrons. “Com a maquete, é possível diferenciar a potência elétrica da corrente elétrica”, explica.
Não foram utilizados computadores e livros didáticos em braile. “Esse tipo de publicação é rara no Brasil e os computadores são caros, bem como os materiais para cegos”, afirma o físico, que planeja a construção em Ilha Solteira de um laboratório de ensino de Física para alunos com deficiência visual.
Estímulo à inclusão
Os licenciandos receberam orientações de como conduzir aulas com a presença de cegos, por exemplo, ditando o que é escrito na lousa – o que pode ser feito também pelos alunos com visão normal. “O contato com os outros colegas é fundamental para o processo de aprendizagem e inclusão dos cegos”, aponta Camargo. “Aconselhamos os licenciandos a conhecer os níveis de visão dos deficientes e, assim, proporcionar canais de comunicação, valorizando percepções não visuais, estimulando o diálogo e a livre expressão de idéias.”
O trabalho foi avaliado por entrevistas e acompanhamento das aulas, para analisar a capacidade dos licenciandos de apresentar atividades adequadas para esse público. Débora de Almeida, uma das graduandas da FC que elaboraram o minicurso, conta que, no início, não acreditava ser possível ensinar Física para quem não consegue ver. “Havíamos visitado salas de aula com deficientes e constatamos que eles ficavam praticamente abandonados”, relata. “Foi recompensador perceber como eles conseguiram entender os conceitos e até fazer questionamentos em que nunca tínhamos pensado.”
Segundo o coordenador do pós-doutorado, Roberto Nardi, docente do curso de licenciatura em Física da FC/Bauru, a grande repercussão do trabalho é explicada pela atualidade da proposta. “Há uma grande demanda, não só na área de Física, por novas alternativas de ensino para alunos com limitações visuais”, comenta.
Docente toca violão e já correu a São Silvestre
A história de um cego que aos 34 anos já concluiu o pós-doutorado não é apenas um exemplo de força de vontade e dedicação pessoal, mas também da importância do professor na vida de um estudante deficiente. Depois de constatado o avanço de seu problema de visão, quando tinha nove anos, Eder Camargo pensou várias vezes em abandonar a escola.
“Foi um professor do ensino médio quem mais me motivou a continuar, pois ele não se conformava que eu parasse os estudos por causa da perda acentuada da visão”, conta Camargo. A família também teve um papel primordial para seu sucesso acadêmico. “Meus pais e meus dois irmãos me estimularam e ajudaram nas lições de casa. Já a minha esposa teve uma grande importância quando fiz o mestrado e o doutorado”, recorda.
Camargo estudou licenciatura em Física na Unesp de Bauru, onde depois fez o mestrado. Já o doutorado foi desenvolvido na Unicamp. Passou em dois concursos para docente da rede estadual de ensino, mas em um deles foi desclassificado na perícia médica. “Os médicos me consideraram inapto para dar aulas”, enfatiza.
Em maio do ano passado, foi aprovado no concurso para lecionar as disciplinas de Didática, Física Geral e Eletromagnetismo no campus de Ilha Solteira. “Isso representou uma vitória e foi resultado de muito esforço para transpor barreiras”, acentua. Nas horas vagas, Camargo se dedica ao violão e à corrida, tendo participado de duas provas de São Silvestre, em São Paulo.
Definição de cegueira
Para determinar o grau de limitação visual das pessoas, a Organização Mundial da Saúde utiliza a Tabela Optométrica de Snellen, que avalia a acuidade visual, ou seja, a capacidade para definir formas. O espectro da tabela vai de 0 a 3. São considerados cegos os indivíduos que possuem acuidade visual abaixo de 0,05. Os deficientes visuais são aqueles que possuem índice de acuidade de 0,05 a 0,3. É considerado normal quem possui acuidade avaliada entre 0,3 e 1.
Segundo a oftalmologista Silvana Schellini, da Faculdade de Medicina de Botucatu, o conceito de cegueira abrange ainda o campo visual – ou ângulo de visão –, que nos seres humanos é de no máximo 180o .“Quando o campo visual é menor que 30o, a pessoa também é considerada cega”, acrescenta.
Julio Zanella/ Jornal da UNESP


http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=83037